Uma Visão Além do Comunismo.
No final dos anos 1940 e início de 1950, o sábio hindu J. Krishnamurti percorria alguns países asiáticos realizando uma série de palestras e impressionando autoridades locais pela quantidade de pessoas que se reuniam para ouvi-lo. Era uma época que o movimento comunista se espalhava fortemente na região.
Numa dessas ocasiões, em Colombo, capital do Sri Lanka, um grupo de deputados comunistas liderados por um importante advogado do país (Dr. N. M. Perera), percebendo que a quantidade de pessoas que se reuniam em torno do sábio eram muito superior às reuniões organizadas pelo partido comunista, tiveram a curiosidade de participar de um desses encontros.
Assim, ele decidiu com seus colegas de partido que deveriam comparecer a um encontro para ver o que havia de tão especial a respeito do homem e descobrir que mensagem ele transmitia para que se justificasse um número tão magnífico de ouvintes e tanta aclamação.
A organização do evento reservou a primeira fileira de cadeiras para os nobres deputados comunistas e seu líder, recentemente vindo de um curso de aprimoramento em Moscow, para que ocupassem essa posição privilegiada.
Iniciado o evento, J. Krishnamurti entrou em silêncio, tomou seu lugar sobre uma plataforma baixa e vagarosamente observou a audiência e indagou: “O que gostariam de discutir?” Todos aguardaram. Então, o Dr. Perera pôs-se de pé. Disse que gostaria de discutir a estrutura da sociedade e da coesão social, e que tal debate deveria incluir uma compreensão dos princípios básicos do comunismo. Ele discorreu sobre a lógica do controle do Estado como a autoridade suprema, e a proposição de que aqueles que executam o trabalho devem receber diretamente o lucro dele advindo.
Como ninguém mais propôs qualquer assunto ou questão para ser discutida, J. Krishnamurti perguntou para os ouvintes se gostariam de discutir aquilo.
Como ninguém falou, ficou evidente que todos estavam interessados em ouvir qual seria a resposta do sábio indiano. Ele sorriu. “Bem, então vamos começar.” O jurista, que havia se levantado, continuou de pé e deu prosseguimento a seu tema político. Falou de maneira abrangente a respeito dos preceitos básicos do comunismo, sobre o uso comunitário e posse de bens e propriedade, e sobre o papel do trabalho. Era uma clara exposição da filosofia e dialética comunista.
Quando o Dr. Perera terminou e se sentou, havia uma expectativa, como J. Krishnamurti iria lidar com a proposição de que o Estado era tudo, e o indivíduo, subserviente à todo-poderosa autoridade central.
Surpreendentemente, ele não se opôs ao que havia sido dito. Quando falou, foi como se houvesse deixado seu lugar sobre a plataforma, de frente para o advogado, e cruzado para o outro lado, para enxergar a condição humana a partir do ponto de vista do comunista e através de seus olhos. Não havia qualquer senso de confronto, apenas um exame conjunto da realidade por trás da retórica.
À medida que o diálogo se desenvolvia, tornou-se uma penetrante investigação sobre como a mente humana, condicionada como é, seria recondicionada para aceitar a doutrina totalitária, e se reeducar a raça resolveria os problemas que atormentam os seres humanos, não importando onde eles vivam ou sob qual sistema social estejam.
Havia mútua investigação dos caminhos através dos quais a filosofia comunista de fato operava, e dos meios utilizados para se lidar com conflitos. E, basicamente, questionava-se se remodelar, redefinir os padrões do pensamento e do comportamento humanos de fato libertaria o indivíduo ou a coletividade do ego, da competição e do conflito.
Depois de aproximadamente meia hora, o Dr. Perera ainda ressaltava a necessidade do controle totalitário, afirmando que todos deveriam caminhar de acordo com a política escolhida, e ser levados a aceitar.
Nesse ponto, Krishnamurti recuou e iniciou-se um diálogo entre ambos: “O que acontece”, perguntou ele, “quando eu, como um indivíduo, sinto que não posso caminhar de acordo com a decisão do comando supremo? E se eu não aceitar?”.
“Nós tentaríamos convencê-lo de que a divergência individual, talvez válida antes de uma decisão ser tomada, não poderia ser tolerada depois. Todos têm de participar, diz o Dr. Perera.”
“Você quer dizer obedecer?”
“Sim.”
“E se eu ainda assim não pudesse ou não estivesse disposto a concordar?”
“Nós teríamos de lhe mostrar o erro de suas escolhas.”
“E como vocês fariam isso?”
“Persuadindo você de que, na prática, a filosofia do Estado e a lei devem ser enaltecidas a todo momento e a qualquer custo.”
“E se uma pessoa ainda assim mantém que alguma lei ou regulamento é falso, o que acontece?”
“Nós provavelmente iríamos encarcerá-la de modo que ela não fosse mais uma influência desintegradora.”
De modo extremamente simples e direto, Krishnamurti disse: “Eu sou essa pessoa.”
Consternação! Subitamente, confronto total. Uma descarga elétrica havia penetrado a sala – a atmosfera estava carregada.
O advogado falou cuidadosamente, calmamente: “Nós o poríamos numa cela e o manteríamos lá pelo tempo que fosse necessário para modificar sua mente. Você seria tratado como um prisioneiro político.”
Krishanmurti respondeu: “Poderia haver outros que sentissem e pensassem como eu. Quando eles descobrissem o que havia acontecido comigo, poderiam se tornar mais avessos à sua autoridade. Isso é o que aconteceria, e um movimento reacionário teria começado.”
Nem o Dr. Perera nem seus colegas de partido queriam continuar com aquele diálogo perigosamente explícito. Alguns já demonstravam nervosismo. Krishnaji continuou: “Eu sou esse homem. Recuso-me a ser silenciado. Falarei a qualquer um que esteja disposto a ouvir. O que você faz comigo?” Não havia escapatória para a questão.
“Afasto você.”
“Me liquida?”
“Provavelmente. Não lhe seria permitido contaminar os outros.”
“Provavelmente?”
“Não, você seria eliminado.”
Após uma longa pausa, Krishnamurti disse: “E dessa forma, o senhor teria feito de mim um mártir!” Não havia modo de evitar as conclusões. “E então?”
Krishnamurti esperou, e aos poucos recuou no curso do diálogo que estava ficando tenso e falou sobre:
• inter-relacionamento;
• sobre a destruição da vida por uma crença, por algum ideal de
futuro, algum projeto mesquinho;
• sobre a destrutividade dos ideais e;
• sobre a imposição de fórmulas sobre os seres vivos.
Abordou a necessidade não de alterações no meio social, por mais necessárias que sejam, mas de transformação interior. Quando terminou, o encontro havia chegado ao fim. Não havia de fato mais nada a ser dito.
Então Dr. Perera levantou-se e, vagarosamente, foi traçando seu caminho até o sábio, que agora já havia levantado e estava observando e aguardando.
Pisando na plataforma, o jurista abriu os braços e envolveu J. Krishnamurti num longo e caloroso abraço. Então, sem uma palavra retornou a seus colegas e a audiência começou a se dispersar.
O encontro havia terminado.
Extraído do The Transparent Mind – a Journey with Krishnamurti, pp. 21-25© 1999 by Donald Ingram Smith
Tradução: Daniel Guimarães
Mesmar, Extraído do The Transparent Mind – a Journey with Krishnamurti e pp. 21-25© 1999 by Donald Ingram Smith Tradução: Daniel Guimarães
Enviado por Mesmar em 23/03/2016
Alterado em 24/03/2016